fevereiro 27, 2010
fevereiro 04, 2010
O mundo possível
Os impolutos caçam os instáveis; os arrojados detestam os jardineiros; os notários odeiam os contemplativos. Os improdutivos foram condenados a viajar na cauda da embarcação. Não se respeita quem não transforma tempo em dinheiro e afeto em vantagem. Impotência é patologia e tristeza, debilidade.
Acredito noutro mundo possível. Um mundo onde não se tratam fragilidade como aleijão, precariedade como rebelião e tristeza como morbidez; onde as igrejas acolhem como as tabernas e os sacerdotes, sensíveis como as avós.
Luto por outro mundo, onde os tribunais tratam a miséria como insulto, a guerra como anacronismo selvagem e o trabalho infantil como maldição.
Minha frágil ousadia se sustenta nesse filamento; quero projetá-la como facho de bondade. Apesar de mera gota, espelho o universo com toda complexidade. Inquieto, encarno a divindade em vaso de barro. Assim, transformo-me cotidianamente na resoluta decisão de impedir que a vida se esvaia pelas trincas do descaso.
Por Ricardo Gondim
Via site Ricardo Gondim
GENEROSIDADE
O tributo é a dádiva da obrigação: dar a César o que é de César. A oferta generosa é a dádiva do coração: dar a Deus o que é de Deus, pois a Deus não se dá por obrigação. A solidariedade é a dádiva da responsabilidade, ou como ensinou Martin Luther King Jr., "a injustiça em algum lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares", ecoando Abraham Lincoln: "Ao darmos liberdade aos escravos, estamos garantindo a liberdade aos que são livres". A generosidade é dádiva da liberdade-liberalidade, de quem possui, mas não é possuído. A solidariedade é a dádiva da consciência. A generosidade é a dádiva do coração. Na solidariedade há inteligência, na generosidade, afeição.
Amar ao próximo como a si mesmo é solidariedade, e nesse sentido, a solidariedade é uma forma de amor indireto por si mesmo: cuidando dele, cuido de mim, ou, no mínimo, mostro como se deve cuidar de alguém, caso um dia esteja eu no lugar do próximo que ora ajudo. Amar ao próximo com o amor de Cristo é amar ao próximo inclusive às custas do sacrifício de si mesmo, estou disposto a dar do meu para que o outro jamais tenha falta, não me importando sequer se a falta será minha.
Amigos de verdade, observou Montaigne, não se pode emprestar nem se dar nada, pois tudo é comum entre eles. Assim viveram os primeiros cristãos: ninguém considerava propriamente seu o que possuía, pois tinham tudo em comum. Nesse caso, a generosidade se destina ao outro, ao estranho, e mesmo ao inimigo. Que virtude em ser generoso com os filhos, já que a felicidade dos filhos é a felicidade dos pais?
Comte-Sponville pergunta: que porcentagem de sua renda familiar você consagra a despesas que se possam chamar de generosidade, em outras palavras, a uma felicidade diferente da sua ou de seus íntimos? Ele mesmo responde: cada um responderá por sua conta, mas imagino que estamos quase todos abaixo dos 10%, e muitas vezes, faça o cálculo, abaixo de 1%. Certo, o dinheiro não é tudo, diz ele, mas porque milagre seríamos mais generosos nos domínios não financeiros ou não quantificáveis? Por que teríamos o coração mais aberto do que a carteira? O inverso é mais verossímil.