março 23, 2009

Resíduos de uma memória póstuma

por Ricardo Gondim

Sou primo de Brás Cubas. Igual a ele, também personagem de um romance, só que bem canhestro. Fui inventado por um escritor de segunda linha. Mesmo assim, sigo os passos de meu primo famoso e deixo as minhas memórias póstumas. Escolhi copiá-lo já que nunca tive coragem de ser cândido enquanto respirei. Embora um homem comum, sempre temi censuras. Por este simples motivo decidi escrever só depois que abandonei a vida


Amei e odiei como todos, mas, acorrentado ao cotidiano, não escapei de ser empurrado pelo ofício de sobreviver. Eu acreditei no imperativo de findar a jornada como modelo de sucesso. Assim, sonhei e trabalhei sem perceber a brevidade da vida.

Daqui, noto que me deixei encabrestar por escrúpulos sociais e domesticar por demandas religiosas. Pobre de mim, pacificado, a minha existência se esvaíu em uma homorragia lenta.

Agora morto, medito sobre o meu ativismo. Restaram-me estes olhos fatigados, fixos e cadavéricos. Vejo a estearina bruxuleante que acenderam para a última vigília e desperto: estas olheiras nasceram de minha constante responsabilidade. Desde a adolescência lutei por ideais que me cobravam forças onipotentes. Desprezei a sede pelo silêncio. Arfo pelo inefável. Tenho fome de beleza.

Onde estou, os espelhos são nítidos. Brilha uma claridade cristalina por todos os lados. Lembro-me dos mínimos detalhes e, como não tenho pressa, determino que vou encontrar-me. Não posso avinagrar o que restou na alma. Preciso integrar-me e descansar o coração. Espalho as circunstâncias vividas como peças de um tabuleiro para tentar dar algum sentido ao que experimentei.

Estabeleço que o tenhoque deixará de ser um jugo; o nãodevo, uma obrigação; o nãoposso, um tabu.

Quero ter a minha vida leve como uma pipa. Que o meu porvir seja intrépido como uma jangada feita com os galhos de um carvalho manso. Só agora estou seguro. Não preciso provar-me a uma divindade incontentável. Nenhuma guilhotina desceu sobre meu pescoço imaterial. Já não me sinto obrigado a defender um nome - não se traz qualquer notabilidade para esta dimensão. Sou anônimo entre anônimos.

Quando precisar escalar a próxima serra, não me considerarei um pusilânime. Prometo galgar todas as ladeiras sem fanfarrice. Sóbrio, pretendo encarar o porvir com mais cuidado.

Aprendi, tardiamente, que a minha jornada foi precária, as escolhas, provisórias e as certezas, imprecisas. - Oh, nunca imaginei que admitiria a minha debilidade! Há pouco, afirmava que só incompetentes e medíocres comentam os seus malogros. Porém, contemplo o meu corpo inerte, desfigurado, sem viço. Juro: - De agora em diante, marcharei um passo de cada vez, um pé na frente do outro – o mal de cada dia me bastará.

Por que não inspirei a beleza inútil que me rodeava? No estado de deslembrado, deixo de ser prático, dou de ombros para os lógicos e rio dos úteis. Estranho. Sinto-me satisfeito com as imagens imprecisas que o coração guardou. Retalhos de momentos esparsos tornaram-se a minha pouca fonte de alegria.

Prometo: não serei leviano no próximo abraço, distraído na próxima conversa e jamais reticente diante do próximo afeto.

Acabei-me. Não quero lápide. Sei que vou amarelar nos álbuns de fotografia. Inconformado, grito, esbravejo e esmurro o chão: – Quero viver, quero viver, quero viver. Mas, dos confins da eternidade, ressoa: “Tarde demais”.

Soli Deo Gloria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário