janeiro 28, 2010

Não morri pela primeira vez


A estrada de minha vida foi doce e adstringente em proporções iguais. Ri e chorei, ousei e apanhei com igual intensidade. Amei e odiei como todos os vis mortais. Não ouso reclamar dos afogamentos, dos desgostos, dos embotamentos. Sou vítima e verdugo, infectuoso e réu. Contudo, na metade dos meus cinquenta anos, baqueei. 
As decepções se agigantaram no peito e o coração bateu sem ritmo – e, parece, ele nunca mais baterá igual; desilusões que nasceram, muito provavelmente, de olhos idealistas. Não, nunca fui ingênuo. Eu percebia as gambiarras institucionais; enxergava os olhares furtivos de monacais que sagazmente azeitam a máquina eclesiástica como meio de vida; notava as lógicas internas de um edifício doutrinário que não se sustenta diante da imensa tragédia humana. Mas, entusiasmado com minha própria potencialidade, insisti nos quixotismos. Eu não queria ver o mal que me rodeava. Meus olhos se fixavam nas conquistas – Conquistar o quê, meu Deus, se eu próprio não passava de um tolo que nunca se dominou? 
As dores se sedimentaram e eu acabei no leito de um hospital. No intento de fazer o bem, ganhei inimigos. No esforço de ser relevante, fiz-me antipático. Descobri que a popularidade cobra um preço alto. Aprendi que o zelo pelo bem termina em patíbulo. Como um bicho selvagem que não se dobra diante do chicote, nunca me acostumei às pedradas. Sofro horrores com a saraivada dos infames. Minha carne vira combustível volátil na fagulha inclemente da mentira. 
No leito, sem acesso à abóboda celestial, tomei certas decisões. Na absoluta depuração de ouvir os passos da Senhora da Foice, rabisquei nas tábuas do espírito: "Não sairei daqui o mesmo". Minhas resoluções não precisam significar nada; elas são minhas, apenas minhas.
Decido distanciar-me completa e totalmente de qualquer debate doutrinário. Não preciso provar coisa alguma. Sem medo, vou caminhar sem carecer de bitolas. Teimoso, eu voltava a desafiar críticos. Mas agora me dou por vencido. Resignado, viro o lado esquerdo da cara para os Curadores da Reta Doutrina. Que eles fiquem com o báculo da ortodoxia. Que se refestelem com a enormidade de suas descobertas espirituais. Sinto que devo marinar a alma com temperos exóticos. Prefiro aprender com prostitutas – elas me precederão no Reino. Às vezes penso em gritar, mas já é tão tarde, meu Deus!
Decido abrir mão de buscar granjear seguidores. Meu caminhar não será comprometido por lisonjas – Quanto mais lisonjeados, mais dificultados de encarar o futuro! 
Decido pactuar com quem não teme molduras, não pensa a partir de rótulos e não faz varredura no universo sagrado, que é a alma do próximo. Os purgativos que se encontrem na roda dos puros. Quero mergulhar a cabeça na poesia dos que a moralidade puritana considera insalubre. Não evitarei a genialidade dos maculados pelo crivo provinciano dos novos Torquemadas. 
Decido dedicar-me à literatura. Ainda hei de escrever; mas não para salvar o mundo. Acredito que a pena do destro escritor tem o poder de resgatar a mim mesmo enquanto padeço. Insubstancial, vou tentar entender a força do verbo que se faz carne. Rei de mundos quiméricos, não vou necessitar proteger as costas de vampiros emocionais.
Renasço. Sem afetação, engatinho aos cinquenta e seis. Decido enfrentar a nova puberdade em melhores condições, espero. A proverbial energia dos adolescentes me encorajará na fascinante tarefa de me fazer humano na velhice. Peço tão somente que não me prendam em cercaduras, o horizonte teme os meus olhos e eu não cesso de persegui-lo.

Por Ricardo Gondim

Soli Deo Gloria

Via site Ricardo Gondim

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